CAPÍTULO 4/6
Agora é que vai ser o delas!... Que hipóteses é que a gente tem?...
Agora é que vai ser o delas!... Que hipóteses é que a gente tem?...
- Muito bem, o que é que o senhor professor tem a dizer disto tudo?, perguntou-me, assim de rajada, o comandante da GNR, com as mãos juntas atrás das costas, olhar duro, bem apontado aos meus olhos; a voz, claramente ele esforçava-se por ser intimadora.
Ups!... Olá!... Na verdade, se eu não estava a ver mal aquele filme, o comandante da GNR estava a dar-me uma chance!... Abrir a conversa assim comigo, no meu entender, mesmo que ele quisesse parecer duro e intimidador, significava que ele estava na disposição de “regular” a pena e as multas. Quem quisesse simplesmente servir-se da aplicação estrita da lei e dos regulamentos não falaria assim… Era a minha oportunidade! Teria de ser capaz de ter bom-senso e argumentos seguros, “mansos”, convincentes. Eu tinha de conseguir entrar diplomaticamente e simpaticamente pela porta que ele me estava a abrir.
É evidente que, a estes anos de distância, não me lembro do que disse, quais as palavras que usei exatamente. Tenho ideia da sequência dos argumentos. Por isso, o que a seguir vou dizer é simplesmente uma re-elaboração esforçada do que disse, na tensa tentativa de safar a malta; até de safar o nosso heróico condutor.
- Ai, senhor Comandante, o que quer o senhor que eu lhe diga… há poucos minutos estávamos todos bem contentes e alegres e agora ainda estou a tentar perceber o que é que nos aconteceu realmente… não sei mesmo que lhe diga… [Eu sabia que não podia fazer muitas pausas, tinha de manter a iniciativa na conversa; o oficial da GNR, que já tinha dado mostras de que estaria disposto a ouvir-me, ficaria seguramente mais calmo se menos falasse. Se ele fosse obrigado, por causa do meu silêncio, a falar, teria de assumir outra vez o papel de polícia duro (ou firme) e as palavras rijas que dissesse reacenderiam as emoções rijas que rapidamente levariam a um castigo exemplar] É claro que nós temos ideia do perigo que é andar em cima de viaturas deste tipo, mas, sabe como é, somos muitos, estamos longe da nossa cidade, sentimo-nos seguros nestes ambientes tão acolhedores [Havia que acentuar a perceção das emoções positivas…], sentíamo-nos aqui tão bem… e, senhor Comandante, um quilómetro em cima de um veículo destes, a esta hora, sem trânsito nenhum, uma coisa de minuto e meio, dois minutos… está a ver, não nos pareceu que o risco fosse muito grande… É claro que não está em causa a legalidade ou ilegalidade do nosso comportamento, quem sou eu para discutir isso com o senhor, mas demos mais ouvidos ao entusiasmo dos miúdos, eu conheço-os bem, ponho as mãos no fogo por eles, sei que são conscientes e cumpridores… Ó senhor Comandante, desculpe-me a pergunta, acha que se não fossem assim de confiança a gente se arriscava a trazer tantos alunos acompanhados por só um professor ou dois?...
- Mas este senhor não tem documentos, nem dele, nem da viatura, já viu a rabaldaria que isto é?... disse-me o capitão, interrompendo-me a defesa… da nossa pele!
Gostei desta interrupção! O senhor comandante da GNR estava implicitamente a dizer-me que não precisava de ouvir mais razões que asseguravam a nossa “bondade” e a nossa “ingénua boa-fé”. Saltava para outro ato objetivamente incorreto e condenável. Mas o que eu entendi foi qualquer coisa deste tipo: “Bem, assim safas-te e safas os teus. Agora, ajuda-me cá a safar este desgraçado que só quis ser porreiro para vocês, não tem nada a ganhar com isto…” Era o momento de pegar no trunfo que tinha inventado quando desejei que o condutor não encontrasse os documentos!
- Senhor comandante, permita-me que lhe diga, quer melhor prova da nossa boa fé? Deixe-me que lhe explique [O comandante da GNR franziu o sobrolho, fixou melhor os olhos em mim: “Sim, quero ouvir…”]: Este senhor é um profissional, sabe que leis tem de cumprir, sabe como deve ser um condutor cuidadoso, sabe quanto o seu bom comportamento na condução é fundamental para que possa exercer a sua profissão… Eu não acredito que se ele pensasse que a ajuda que nos deu fosse especialmente perigosa para nós e também para ele, por mais simpático que quisesse ser connosco, ele teria feito o que fez. Ele cruzou-se connosco ali mesmo atrás, e nós dissemos-lhe para onde queríamos ir. Ele disse-nos que não podia levar-nos lá [Pois… quem tiver poder para o fazer, que me perdoe esta mentira… mansa!, só para safar todos, até o nosso herói.], que ficava já ali à frente, nós é que insistimos e dissemos ao senhor que até isso nos dava jeito porque ainda tínhamos muito para andar. Está a ver, senhor Comandante, nós quase obrigámos o senhor condutor a aceitar!... [Olhei o condutor, que ouvia avidamente a minha conversa. Nesta altura ele deve ter percebido a minha conversa de há pouco porque sorriu e acenou afirmativamente com a cabeça.] E se ele andava sem documentos, confesso-lhe, senhor Comandante, que eu já fiz o mesmo, é assim quando a gente está num sítio, sei lá, em casa e precisa de sair, de ir só ali. A gente sai com a certeza de que é só mesmo ir ali e voltar, numa coisa de minuto, um minuto só mesmo!
Aqui me calei intencionalmente. Queria ver como o capitão da GNR ia reagir. Ele percebeu que eu lhe estava a dar a deixa. Finalmente, depois de uma breve pausa, disse: “O senhor professor fala muito bem… ou não fosse professor!... Mas o que aconteceu é muito grave!...”
Eu tinha pensado não pegar na situação pelo lado do calcanhar de Aquiles do procedimentos dos polícias de trânsito. Mas o comandante da GNR estava a recentrar a discussão nos atos em si. Mesmo que boamente. Agora, não sei se intencionalmente, se inadvertidamente, deu o flanco, expôs-se ao ataque ao ponto frágil. Aproveitie, passei ao ataque! Mansamente, claro!... A faca e o queijo ainda estavam nas mãos fardadas.
- Senhor Comandante, permita-me que lhe diga, não me interessa falar bem, isso sim, interessa-me educar bem, tenho estado a pensar como poderei tornar esta ocorrência numa boa situação de aprendizagem para estes meus alunos. Até conto consigo para o fazer! [Bem!... Ponho as mãos no fogo por que o senhor comandante não estava à espera desta, mas resolvi – foi mesmo naquele instante! – apostar na disponibilidade que ele tinha mostrado quando se abeirou de mim para esta conversa. Agora, sim, era a hora de jogar a cartada – ou estocada – final] Eu tenho a certeza de que eles todos, a esta hora, já perceberam porque é que os professores não podem ser sempre porreiros para os alunos, às vezes é mesmo para os proteger e, se calhar, foi aí que eu falhei, não os protegi desta situação que, se olharmos para eles, os marcou já bastante. Olhe para eles, senhor Comandante [Era agora!...], nunca eles pensariam que alguma vez, na vida deles, num momento de recreação de uma visita de estudo, no seu próprio País, alguém os mandasse encostar à parede… a sério, senhor Comandante!... [Ui!... Como iria reagir o ainda há pouco tão zangado oficial da polícia de trânsito?] Encostar à parede a sério, todos em fila, como ouviram falar nas aulas de História, na Segunda Guerra, na Guerra Civil de Espanha, no tempo da nossa PIDE… Sei que vou ter de me ocupar com eles uma hora ou duas para perceberem bem a diferença entre a transgressão em que incorreram e essas outras situações que conhecem das aulas e da televisão. [Continuo a pensar que haveria por ali uma arma a ser exibida perante os alunos, mas não posso garanti-lo. Mas, se me conheço bem, não sei se teria tido esta ideia, não sei se me teria vindo à ideia a imagem de um fuzilamento se não estivesse ali uma arma à vista, empunhada por um dos agentes policiais] E isto não tem nada a ver com a multa a que estão todos sujeitos, é a sua própria formação pessoal e social que está em causa. Eu falharei como educador se não vier a falar com eles sobre isto… E é aqui, senhor Comandante, que o senhor pode ajudar-me, gostava mesmo que lhes dissesse alguma coisa sobre o que se passou aqui.
Eu não queria “endrominar” o senhor capitão da GNR, mas queria sinceramente transformar este “crime” numa experiência de aprendizagem. O que tínhamos feito não tinha tido, felizmente, quaisquer consequências que prejudicassem fosse quem fosse.
O senhor oficial da GNR olhou para mim, estava visivelmente mais sereno. Penso que gostou que eu o tivesse puxado para o meu lado, para a função educativa, não simplesmente repressora da polícia. E terá percebido o "puxão de orelhas" que lhe dei. “Já lhe digo alguma coisa…”, disse-me ele.
Afastou-se um pouco, foi falar com o condutor. Percebi que estava a falar com ele sobre a apresentação dos documentos numa esquadra da região.
Voltou depois para ao pé de mim e mandou-me juntar os alunos todos. Ele ia comunicar-nos o que tinha decidido.
(Continua... Capítulo 5: As saudades que eu já tinha da minha alegre casinha... Mas... que é isto?... Fechados na rua, como o puto de Alves Redol?...)
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1 comentário:
Pessoal, era giro que não se limitassem a ler os capítulos desta saga. Percam um minuto, ou mesmo cinco, a deixarem, na forma de comentário, um registo das vossas lembranças desta... aventura! Já viram o livrinho que o relato desta ocorrência poderá dar? Um livrinho editado pela Eça, de autoria coletiva! Seria a primeira vez! Vá, força nesse teclado, a acrescentar memória!
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